Entenda como o RJ quer usar o Maracanã para pagar dívida com a União e o que dizem especialistas
26/10/2025
(Foto: Reprodução) Venda do Maracanã pode ter relação com próximas eleições
O Governo do Rio de Janeiro quer usar o Complexo do Maracanã — um dos maiores símbolos esportivos do país — como ativo financeiro para abater parte da dívida bilionária do estado com a União.
O estádio foi incluído em uma lista de 62 imóveis que poderão ser vendidos para levantar recursos e permitir a adesão do RJ ao Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag), do governo federal.
O projeto foi aprovado na última quarta-feira (22) pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), mas ainda precisa ser votado no plenário, onde pode sofrer alterações.
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A dívida do Rio com a União ultrapassa os R$ 190 bilhões, segundo a proposta orçamentária de 2026, e a previsão é que o estado pague cerca de R$ 12 bilhões no próximo ano.
O Palácio Guanabara espera arrecadar parte desse valor com a venda dos imóveis, o que ajudaria a reduzir o déficit orçamentário estimado em R$ 19 bilhões para 2026. A ideia é usar bens públicos — como o Maracanã, a Aldeia Maracanã, o Batalhão da PM da Tijuca e imóveis da Uerj — para amortizar parte da dívida e garantir a entrada no novo programa de ajuste fiscal.
O Propag, criado pela União, permite que estados endividados utilizem ativos públicos para quitar débitos e reduzir juros. O programa substitui o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) e prevê contrapartidas, como destinar economias obtidas com juros à educação, moradia e segurança pública.
Maracanã na lista de imóveis à venda
A inclusão do Complexo do Maracanã na lista foi aprovada pela CCJ da Alerj, que alterou o projeto enviado pelo governador Cláudio Castro (PL). A comissão retirou 16 imóveis da proposta original e incluiu 30 novos, entre eles o estádio e a Aldeia Maracanã.
Segundo o presidente da comissão, Rodrigo Amorim (União Brasil), o objetivo é reduzir gastos com imóveis subutilizados e “garantir uma destinação adequada ao Maracanã”.
"Cada vez que o Maracanã abre para um jogo, seja ele qual for, é uma quantia próxima a R$ 1 milhão para acontecer o evento. Não faz sentido o estado continuar bancando isso. Ou vende o Maracanã, ou faz uma concessão mais longa, mas algo precisa ser feito", afirmou Amorim.
Estádio do Maracanã
Fernando Maia/Riotur
O deputado Alexandre Knoploch (PL), relator da proposta, reforça que o projeto busca dar viabilidade financeira ao estádio e revitalizar o entorno.
"Nosso objetivo é garantir arrecadação, mas também evitar que o Maracanã se torne um elefante branco. A solução passa necessariamente pelo Flamengo", disse.
Já o deputado Luiz Paulo (PSD) afirmou que a inclusão do estádio é irregular e defendeu que os imóveis inseridos no projeto passem por uma avaliação patrimonial prévia.
"A inclusão, por emenda parlamentar, de imóveis não incluídos na proposta original do governo sem prévia avaliação patrimonial configura ato inconstitucional, por violar os princípios da legalidade, moralidade, eficiência e transparência administrativa previstos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988", afirmou.
"Tal medida também incorre em vício formal de iniciativa, uma vez que a alienação de bens públicos é matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo", acrescentou Luiz Paulo.
Projeto mira o Flamengo e as eleições
O presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar (União), e o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), após encontro no Palácio Tiradentes
Reprodução
A venda do Maracanã também se insere em um tabuleiro político complexo. A proposta é vista por parlamentares como um movimento estratégico do presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar (União Brasil), pré-candidato ao governo do estado em 2026.
Segundo Rodrigo Amorim, a ideia de incluir o estádio surgiu após uma reunião com Bacellar e o presidente do Flamengo, Luiz Eduardo Batista (Bap). Deputados avaliam que transformar o Maracanã em um ativo rentável pode render dividendos políticos.
A disputa também envolve o prefeito Eduardo Paes (PSD), que ajudou o Flamengo a adquirir o terreno do Gasômetro, na Zona Portuária, para construir seu próprio estádio.
Caso o clube desista do projeto e opte por comprar o Maracanã, Bacellar sairia fortalecido na disputa eleitoral contra Paes.
A cientista política Mayra Goulart, da UFRJ, avalia que a associação ao Flamengo representa uma estratégia política.
"O Bacellar tem o desafio de se tornar conhecido. Ele vem do interior, é pouco conhecido. Paes e Bacellar estão tentando mobilizar a popularidade associada ao Flamengo para tentar ampliar seu capital político. Ele (Bacellar) dá ainda uma sinalização para um discurso de boa gestão, de corte de gastos, de redução da administração pública", afirma Mayra.
Maracanã: concessão vai até 2044
Flamengo e Fluminense assinam contrato de concessão do Maracanã com o Governo do RJ
O estádio, que pertence ao governo do estado, está atualmente sob concessão do consórcio formado por Flamengo e Fluminense até 2044. O contrato prevê outorga anual de R$ 20 milhões ao estado e investimentos de R$ 186 milhões pelos clubes ao longo de 20 anos.
O projeto aprovado pela CCJ não detalha como ficaria a venda de um imóvel já concedido, mas prevê que, em caso de alienação, caberá ao comprador negociar com o ocupante ou promover a desocupação — sem ônus para o governo.
O texto também menciona que ocupantes regulares há mais de 1 ano podem ter direito de preferência na compra, o que abre brecha para interpretação favorável ao consórcio Fla-Flu.
O que diz a lei
Especialistas em Direito Público e Administrativo ouvidos pelo g1 divergem dos deputados sobre a legalidade da venda de um bem público atualmente concedido.
O advogado Mauro dos Anjos, especialista em Gestão Pública, explica que a venda é possível, mas apenas se cumpridas exigências formais, como autorização legislativa, avaliação patrimonial e desafetação do bem público.
"A alienação de bens públicos é permitida, mas não se apagam automaticamente contratos em vigor. O comprador assumiria o bem com o ônus da concessão ou teria que negociar a rescisão, o que pode gerar indenizações e disputas judiciais", afirmou Mauro.
Ele também avalia que a inclusão do Maracanã na lista é juridicamente frágil e sujeita a contestações, especialmente se não houver estudo de viabilidade e respeito ao contrato com o consórcio.
Estádio Jornalista Mário Filho, o Maracanã, na Zona Norte do Rio
Reprodução
Já o tributarista Bruno Medeiros Durão diz que o estado até pode vender o estádio, mas deve preservar o contrato de concessão vigente.
"O novo proprietário herdaria o bem já sujeito às obrigações assumidas pelo consórcio. (...) Extinguí-lo exigiria indenização ao concessionário pelos investimentos não amortizados", explica.
Durão também avalia que, se não houver estudo técnico prévio demonstrando a viabilidade jurídica e econômica da operação, a inclusão do estádio na lista de bens à venda pode ser contestada judicialmente.
"Qualquer tentativa de alienação sem considerar os direitos do concessionário pode ensejar ação judicial por violação de contrato ou enriquecimento ilícito do estado", reforçou.
Riscos após eventual venda
Apesar de o projeto abrir caminho para a alienação do Maracanã, especialistas alertam que a medida envolve desafios jurídicos e riscos patrimoniais para o Estado do Rio.
Segundo eles, a operação só seria viável se fosse observada uma série de exigências legais e contratuais, sob risco de judicialização e prejuízo financeiro.
O advogado Mauro dos Anjos, especialista em Gestão Pública, explica que o estado até pode vender o estádio, mas não pode simplesmente ignorar o contrato de concessão vigente com o consórcio Flamengo-Fluminense.
"A venda de bens públicos é permitida, porém, só em condições formais estritas. O imóvel público que estiver destinado a uso comum do povo ou a fins especiais precisa ser desafetado e a alienação deve obedecer aos requisitos legais", explicou.
Segundo Mauro, a operação é impactada pela existência de um contrato de concessão vigente, já que a venda do imóvel não extingue automaticamente os encargos a ele associados.
"A venda não apaga automaticamente a concessão. O contrato deve ser tratado conforme regras contratuais, anuência do poder concedente e eventuais decisões judiciais", explica.
Segundo ele, há três caminhos possíveis em caso de venda:
a transferência do contrato para o novo proprietário, com anuência do estado e do consórcio;
a manutenção da concessão, com o comprador assumindo o bem já onerado;
ou a rescisão negociada, com compensações financeiras.
O especialista também considera que a inclusão do estádio na lista de bens à venda pode ser questionada judicialmente se o governo não cumprir todas as formalidades exigidas pela legislação — como a desafetação do bem, a avaliação patrimonial e a justificativa de interesse público.
"A alienação de um equipamento como o Maracanã exige um processo rigoroso. Se o estado não comprovar o interesse público e não respeitar as etapas legais, qualquer cidadão, partido ou o próprio consórcio pode acionar a Justiça", afirmou Mauro.
Além das questões contratuais, Mauro lembra que o Maracanã é um símbolo cultural e esportivo, parcialmente tombado, o que torna a venda ainda mais delicada.
"Vender um bem como o Maracanã não equivale a vender um terreno ocioso. Trata-se de um equipamento cultural e esportivo, tombado parcialmente, com forte simbolismo nacional e envolvimento comunitário. A alienação pura e simples pode violar princípios constitucionais do patrimônio cultural e do interesse público."
O advogado Bruno Medeiros Durão, tributarista e especialista em finanças públicas, tem avaliação semelhante. Para ele, a alienação de um bem público concedido é juridicamente possível, mas apenas se o contrato de concessão for preservado.
“A venda não extingue o contrato. O novo proprietário herdaria o bem já sujeito às obrigações assumidas pelo consórcio. Se o estado quiser romper o contrato, precisará indenizar o concessionário pelos investimentos ainda não amortizados, como determina a Lei das Concessões”, explicou.
Durão enfatiza também que, se a operação for conduzida sem estudo técnico e sem considerar os direitos do concessionário, o estado corre o risco de passivos maiores do que a arrecadação obtida com a venda — o que tornaria a medida contraproducente do ponto de vista fiscal.
Para ele, embora o projeto faça sentido do ponto de vista fiscal, é preciso cuidado para não transformar uma solução emergencial em um novo passivo financeiro.
"Uma venda mal estruturada poderia gerar litígios, afastar investidores e até elevar o passivo do estado, caso sejam devidas indenizações ao concessionário atual. Portanto, a estratégia pode ser financeiramente positiva em tese, mas depende de uma modelagem jurídica sólida e de amplo diálogo com os atuais operadores do estádio."
"A venda de ativos resolve o problema apenas no curto prazo. Ela não corrige a estrutura de gastos nem cria novas fontes de receita permanente. É uma solução de alívio imediato, mas não estrutural", completou Mauro dos Anjos.